terça-feira, 31 de março de 2009

Ruínas

Com a alma nua de vaidades,
O anjo que não se vê
Está postado
Sobre o sino,
hoje mudo
Sem badalo.
Vigia a cidade.
Sob seus pés
Os restos
Do que fora um dia
Poder e honra.
No passado a glória
Hoje ruína e pó.
Transeuntes
Sobem e descem
Ele observa
O poder que na eterna disputa
Muda de mãos.
Outrora luxo
Hoje miséria
Arfa asas
Espreguiça.
Aproximo
Vejo contraste
Passado e presente
Vida e morte
Ao orgulho
Conceitos
Preconceitos
E o anjo simplesmente
Sorri...

Lila
(Série Anjos)

segunda-feira, 30 de março de 2009

Altar

O Poeta banha-me em palavras.
Embala-me de amor,
me deixando sonolenta - a alma.
Dá-me o alimento,
que o dinheiro não compra.
O pão que não vem da labuta.
Misturando aos animais,
às cores,
às flores.
Sou eu a paisagem.
Sou musa do poema sem nexo.
Sou a prosa, sou o verso,
sou o seu altar de amar.
Vou de alfa a ômega,
o tempo já não conta.
E meu corpo, que já não é tão meu,
reflete agora palavras -
desordenadas
que só eu posso entender,
pois são minhas,
como tatuagens definitivas
desenhadas uma a uma,
por seus dedos que são,
penas mágicas que em mim escrevem,
com carinho,
letras de luz.

Lila

quinta-feira, 26 de março de 2009

É noite de chuva

Agrada-me a cor e a textura do papel cuidadosamente disposto à minha frente.
Uma pena, um tinteiro. Uma cabeça cheia de idéias.
O branco da minha camisa se mistura ao da toalha da mesa. Não há mais ninguém nessa sala. Para o que farei agora, dispenso testemunhas.
Tudo parece tão simples. É só desenhar letras cursivas enfeitadas, articulando suaves palavras. Palavras essas, que chegarão às suas mãos depois de secas, dobradas e entregues ao serviço de correios mais confiável do mundo.
Sim, certamente elas te chegarão a ti.
“Lembro-me com nostalgia das loucuras do nosso passado e da sua insistência em me pedir:
- Cuide um pouco mais de mim.
Sei que isso já passou. Assim como tantas outras coisas que ficaram esquecidas no tempo, sufocadas pela razão. Pela minha razão.
Parece que chego a ouvir de novo sua voz rouca e pausada. Sentir o calor daquela luz que entrava pela janela desse mesmo cômodo, onde hoje sozinha, me permito sem culpa, tocar no assunto.
Abortei tantas vezes os nossos sonhos, como se fossem só meus.
Não embarquei no trem do destino que partia em alta velocidade. Fiquei parada nessa estação.
E o mundo girou. As coisas se ajeitaram, cada uma em seu devido(?) lugar.
Cresci como broto castigado nas pedras, me enfiando pelas frestas, sendo o que era possível ser.
Às vezes, recebia lacônicas notícias suas. Do seu vagar quixotesco mundo afora. Da sua ilusão alimentada pela minha lembrança. Do seu choro convulsivo diante da imagem do meu ventre inchado, que fazia brotar uma semente que não era sua.
Confesso agora, que neste dia, eu também chorei.”

Levanto-me da cadeira. Invadida pela sensação paradoxal de que vivo num mundo marcado pela robotização e pelo sonho(Ed).
Opto pelo sonho.
Vou atrás do nosso sonho.
Ressuscitado.
Agora assustadoramente realizável.

E te bato à porta. Não como antes. Mas como o cão perdido que retorna.
Seu olhar me percorre. Reconhece o bem perdido, encontrado numa prateleira qualquer, ostentando no pescoço um laço como os dizeres: “sempre fui sua”...
Não esperava que houvesse festa e flores. Que ao fundo tocasse a música suave que nos embalou por tantos anos.
Eu só queria mesmo, esse olhar que me fita agora.

Lila

terça-feira, 24 de março de 2009

Mão-dupla

Ah,
Esse meu amor
Que me vê
Equação sobrenatural
Que me lê
Transcendental
Veste uma calça jeans
E caminha sem camisa
Se exibindo para mim
E na mesa da cozinha
A fotografia esquecida
Vem a crise de ciúme

Ah,
Esse meu amor
Que me vê
Enciumada
Que me lê
Descompensada
Visto uma saia curta
E caminho pela rua
Com a minha face rubra
E na mesa da cozinha
Já não há fotografia
Mas um ciúme, que continua

E,
Esqueci a ortografia
É a mão-dupla da via!

segunda-feira, 23 de março de 2009

Um


Abril
É a promessa
Verdade em dose homeopática
Início de uma fase
Do infinito lúcido
E que ele [nosso palco]
Continue onde sempre esteve
Irremediavelmente estático
Naturalmente iluminado
Maravilhosamente espelhado
No vestido de seda
Da chamada poesia
Abril
Mês do amor escandalizado
Amaldiçoadamente abençoado
Nos sonhos que permitimos
Beijos desperdiçados
No calor insuportável
Da imaginação
Idas que já não são
Tão definitivas
Espera que já não é
Tão assustadora
Saudade que já foi
Tão destruidora
Seguir-te hei
Como se sua sombra fosse
E a silhueta desenhada
Na fumaça do meu cigarro
Diz-me em voz entrecortada
Quando já não quero mais ouvir
Que não há um lugar sequer
Pra onde possa fugir
E essa nossa loucura
Pincelada pelo tênue traço da sanidade
A mim e a ti mostra
Que já somos

Quase um

Lila


sábado, 21 de março de 2009

Paisagem da lagoa

(Para Lila, com carinho)

uma placa anuncia peixe
a preço de morte e de doença
equilibrada no olhar da moça
uma garça abre sua plumagem de pureza, inocência e horizonte
sobre tudo, perpassando e unindo coisas e homens,
a rola pastora turturina, em lusco-fusco,
sem pretensão nenhuma de poesia,
sem pretensão nenhuma de poema
e apascenta o lobo e o cordeiro
- o sonho de amor do profeta Isaias!
: em diverso paraíso:
voa uma costelada em céu azul-lilás
fecha-se no crepúsculo o sol de Adão...

Ed

(Para o Poeta)

O poeta caminha
Na minha direção
Seus passos incertos me tem buscado
E sou um nada, ainda
Vejo-o calmo, tranquilo
Como o movimento das águas
Que dançam sob meus pés
O Sol se põe, escurecendo a cidade
Tornando-a grande demais
E já não se anuncia mais nada
Seres reluzentes circulam a orla
E a visão que se tem
Não pode ser vendida
Sigo meu caminho de volta,
Sei que o deixei perdido
Assim como eu sempre estive
E um novo poema se desenha em corpos
Escrito a pincél de luz...

Lila

quinta-feira, 19 de março de 2009

Verbo

Há um quê de medo
Reinando em nossas falas.
Construímos um mundo de palavras
E chega a hora
De silenciar o verbo
Já quase esgotado.
Somos um só momento
De inefável feito
De calma e silêncio.
Substituímos verbo por passos
E caminhamos um e outro
Na mesma direção
Nos encontramos
Na esquina dura de concreto armado
Enfeitada de eras
Que transformadas em caminho
Nos torna um ao outro
Indispensáveis
E já não nos ocultamos
Nas palavras
Mas permitimos o primeiro verbo lírico
Que se insinua
Expressando o incompreensível ainda
- Adoro você!

Cisne

Divergimos em tantas coisas,
Mas isso confere graça à clave
Destoamos na assiduidade
Encontramos a frequência.
Mas nada perdemos com isso
Sou noite, você dia
Sei contemplar os cisnes dos mansos lagos...
Enquanto você se perde e se encontra em números
Seus cabelos ainda são negros,
Enquanto os meus mostram rastros da experiência
Meus olhos não têm mais aquela vivacidade dos de um corcel,
Lembram apenas os de um cão
Mas os seus são pérolas negras refletindo o brilho do espelho d´água
Posso estar envergando um capote, ou enrolado numa capa;
Mas mesmo que não haja, verei uma lira nos seus braços.
Eis-me em rápidos traços, em edição revista, mas nem por isso melhorada.
Todo me dou aqui, sem temor algum, e sei que, ao mirar as águas da lagoa, ou o vidro dos seus olhos, vou continuar a te querer mais e mais...
Não buscamos a beleza efêmera
Somos dois verbos que se tocam, e isso, liberto do aparente verniz retórico, já é um poema inteiro de ternura.
E é assim, só assim, que posso te amar
Dessa forma, atraído pelo ser que é, em tudo
O exato oposto de mim...

Lila e Ed

quarta-feira, 18 de março de 2009

Aprender


Sinto-me flor
Árvore inteira a florir
Antes de chegar a primavera
Ao simples toque de suas mãos
Nos meus cabelos
Ainda úmidos da chuva que caiu
Sinto-me flutuante
Como pássaro em dia quente
Ao simples toque dos seus lábios
Na minha boca
Ainda dormente dos beijos seus
Sinto-me amor
Quando nos ausentes espaço e tempo
Vejo-te me abraçar
E a noite pode cair
E o dia pode se abrir
E, alheia a tudo
Colho as flores
Distribuo as sementes
A quem quiser comigo
Aprender a amar...

Lila