quinta-feira, 26 de março de 2009

É noite de chuva

Agrada-me a cor e a textura do papel cuidadosamente disposto à minha frente.
Uma pena, um tinteiro. Uma cabeça cheia de idéias.
O branco da minha camisa se mistura ao da toalha da mesa. Não há mais ninguém nessa sala. Para o que farei agora, dispenso testemunhas.
Tudo parece tão simples. É só desenhar letras cursivas enfeitadas, articulando suaves palavras. Palavras essas, que chegarão às suas mãos depois de secas, dobradas e entregues ao serviço de correios mais confiável do mundo.
Sim, certamente elas te chegarão a ti.
“Lembro-me com nostalgia das loucuras do nosso passado e da sua insistência em me pedir:
- Cuide um pouco mais de mim.
Sei que isso já passou. Assim como tantas outras coisas que ficaram esquecidas no tempo, sufocadas pela razão. Pela minha razão.
Parece que chego a ouvir de novo sua voz rouca e pausada. Sentir o calor daquela luz que entrava pela janela desse mesmo cômodo, onde hoje sozinha, me permito sem culpa, tocar no assunto.
Abortei tantas vezes os nossos sonhos, como se fossem só meus.
Não embarquei no trem do destino que partia em alta velocidade. Fiquei parada nessa estação.
E o mundo girou. As coisas se ajeitaram, cada uma em seu devido(?) lugar.
Cresci como broto castigado nas pedras, me enfiando pelas frestas, sendo o que era possível ser.
Às vezes, recebia lacônicas notícias suas. Do seu vagar quixotesco mundo afora. Da sua ilusão alimentada pela minha lembrança. Do seu choro convulsivo diante da imagem do meu ventre inchado, que fazia brotar uma semente que não era sua.
Confesso agora, que neste dia, eu também chorei.”

Levanto-me da cadeira. Invadida pela sensação paradoxal de que vivo num mundo marcado pela robotização e pelo sonho(Ed).
Opto pelo sonho.
Vou atrás do nosso sonho.
Ressuscitado.
Agora assustadoramente realizável.

E te bato à porta. Não como antes. Mas como o cão perdido que retorna.
Seu olhar me percorre. Reconhece o bem perdido, encontrado numa prateleira qualquer, ostentando no pescoço um laço como os dizeres: “sempre fui sua”...
Não esperava que houvesse festa e flores. Que ao fundo tocasse a música suave que nos embalou por tantos anos.
Eu só queria mesmo, esse olhar que me fita agora.

Lila

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