domingo, 19 de abril de 2009

Cléo insiste...



Amarrada e amordaçada, jogada num canto qualquer, Cléo foi esquecida...
Maria Helena se arruma para sair.
Na frente do espelho avalia a roupa sóbria que escolheu. Cabelos presos num coque, maquiagem discreta. Óculos. Está tudo dentro da normalidade.
No trânsito, suas pernas vão e vêm, sobem e descem. Intercalam a frenagem e a aceleração com a delicadeza que lhe é peculiar. O tempo é curto mas a distância é pequena - vai dar tudo certo. Cléo não existe mais.
Maria Helena não a permite mais.
Sinal vermelho, ela pára graciosamente.
Olha no retrovisor interno para conferir os fios de cabelo que insistem em lhe escorregar pela face. Observa a si mesma. Não há tempo para outras preocupações agora, ela pensa. É preciso seguir.
Mas alguma coisa a prende ao espelho. É o seu olhar.
Seu coração dispara e Cléo lhe salta garganta afora, num grito mudo de desejo realizado, completamente fora do seu controle.
Lá está ela.
Elas conversam entre si? É possível.
Se entendem? Não sei, mas acredito que no mínimo um acordo de damas precisa existir.
Se coexistem, ocupam o mesmo espaço, algumas regras são naturais. Cléo é o id, a parte corajosa de Maria Helena.
Abre-se o sinal.
Quem acelera já não é mais Maria Helena.
Cléo assume a direção.
Ajeita novamente os espelhos, solta os cabelos, joga os óculos no banco. Levanta a saia, Maria Helena é séria demais. Atrás do banco estão seus sapatos preferidos. Joga os que Maria Helena escolheu pela janela e calça outros mais elegantes. Maria Helena é cafona demais. Abre mais um botão da blusa, deixando entrever seu colo alvo coroado por uma corrente que brilha à luz da lua. Muda a maquiagem. O batom agora é vermelho. Seus olhos brilham e sua boca tem um meio sorriso de joça.
A noite promete e ela segue avenida afora.
Vai dançar, rodopiar entre a nuvem de fumaça e cor.
Os planos de Maria Helena foram sabotados. Cléo tem outros mais eficientes, mais modernos e funcionais.
Cléo quebra todos os padrões de comportamento que Maria Helena criou para ambas.
Sente-se bonita e amada. Mulher realizada.
Maria Helena agora, não é paradígma confiável.
É a vida delas. Elas são assim. Se revezam no cotidiano.
Onde uma está, não há lugar para a outra.
Não importa o preço que Maria Helena tenha que pagar pelas atitudes de Cléo.
Agora, quem adormece esquecida é ela.

Lila

3 comentários:

  1. Querida Lila,

    Quanta vontade de estar aqui em seu canto, em seu mundo todos os dias... Tb me sinto parte daqui. Tb sou grato por ter encontrado com a sua poesia pelo caminho! Muito me emocionou seu comentário no Sofia... OBrigado por todo o carinho! Que nossa amizade já tão especial se prolongo e, quem sabe, ainda faremos poesia à quatro mãos...

    Então a Cléo e a Maria Helena são água e vinho? Gostei mto deste seu conto. Vc tem um estilo muito especial. Quantas vezes nós inventamos várias Cléos para que elas façam o que nós não fazemos, não é? Talvez, isso é que nos deixa com sabores diferentes nos sentidos... Quem sabe!

    Minha grande amiga,
    Que vc tenha muita luz em seu caminho e que seu talento continue produzindo frutis tão lindos, verdadeiras obras...

    Com carinho enorme,
    Seu Amigo da Sofia, Whesley

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  2. Obrigada Whesley.
    O elogio de um poeta tão talentoso me emociona.
    Tenha certeza que em algum momento já escrevemos à quatro mãos. Numa esfera que ainda desconhecemos. Creio numa energia que trata de convergir interesses e nem o tempo ou a distância impede que isso aconteça.
    Um grande beijo e que Deus continue nos abençoando assim.
    Lila

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